Contexto:
1970,Gilberto Gil é premiado com o Golfinho de Ouro pelo Museu da Imagem e do Som,pelo samba "Aquele Abraço".
Recusa o prêmio por meio de um artigo publicado no Pasquim.
Abaixo,um fragmento do texto veiculado ,que eu considero um belíssimo exemplo de posicionamento crítico com relação as políticas vigentes ,um manifesto de inteligência e racionalidade pessoais independente de concordar ou não com o conteúdo propriamente.Na realidade,eu concordo.
É preciso que o Brasileiro deixe de uma vez por todas de ser um mero receptor e aceitador de idéias impostas por regimes interessados em alienar nosso raciocínio e passe a caminhar com suas próprias pernas,pensar com suas próprias idéias e enxergar a realidade do país com seus próprios olhos ,com sua cultura.
Quando engolimos sem mastigar o quem vem pronto de fora,estamos na verdade vivenciando outras realidades que não a nossa,experimentando a vivência alheia ,negligenciando dessa forma nossas carências mais profundas e deixando de resolver as questões que nos afetam e nos afligem diretamente.
"Pois, um golfinho de mares cariocas resolve tirar o meu sossego ajudado pela ingenuidade ou pela burrice de meia dúzia de pessoas que de repente resolvem achar importante o fato de eu aceitar ou não um prêmio que me deram. A velha mania brasileira de se meter nos problemas domésticos do vizinho. Mesmo se o cara mora na Inglaterra.
Para mim, a essa altura, aceitar ou não prêmios ao trabalho que fiz no Brasil já não tem a menor importância. Agora eu estou on the road. Sábado passado no Festival Hall, amanhã, depois e sempre em outros lugares - i'm wasted but i can't find my way home. Repito que recusar ou aceitar esse prêmio não tem a menor importância e eu resolvir recusar para ver se vocês estão a fim de entender alguma coisa.
Pois é. Porque não acredito como pensam meu pai & amigos do Brasil que o golfinho me tenha sido concedido por aqueles que reconhecem meu trabalho, que realmente gostam de mim e não pelos que me menosprezam e ignoram. Ingenuidade. Embora muita gente possa realmente respeitar o que fiz no Brasil (talvez até mesmo gente do Museu), acho muito difícil que esse museu venha premiar a quem, claramente, sempre esteve contra a paternalização cultural asfixiante, moralista, estúpida e recionária que ele faz com relação á música brasileira. Sempre estive contra toda forma de fascismo cultural de que o museu - à sura maneira - vem representando uma parcela do Brasil. Se, quando eu estava aí, eu nunca perdi tempo atacando diretamente organizações como o Museu da Imagem e do Som é porque o meu trabalho já fazia isso; minha música já assumia essa responsabilidade. E se eu continuasse aí não sei o que estaria fazendo, mas de qualquer forma tenho certeza que não estaria sendo premiadão. Claro que eu não acredito nesse prêmio. Pelo que me é dado saber o museu continua o mesmo e portanto eu continuo contra e recusar o prêmio é só pra deixar isso bem claro. Se ele pensa com Aquele Abraço eu estava querendo pedir perdão pelo que fizera antes, se enganou. E eu não tenho dúvida de que o museu realmente pensa que Aquele Abraço é samba de penitência pelos pecados cometidos contra "a sagrada música brasileira". Os pronunciamentos de alguns dos seus membros e as cartas que recebi demonstram isso claramente. O museu continua sendo o mesmo de janeiro, fevereiro e março: tutor do folclore de verão carioca. Eu não tenho porque não recusar o prêmio dado para um samba que eles supõem ter sido feito zelando pela "pureza" da música popular brasileira. Eu não tenho nada com essa pureza. Tenho três LPs gravados aí no Brasil que demonstram isso. E que fique claro para os que cortaram minha onda e minha barba que Aquele Abraço não significa que eu tenha me "regenerado", que eu tenha me tornado "bom crioulo puxador de samba" como eles querem que sejam todos os negros que realmente "sabem qual é o seu lugar". Eu não sei qual é o meu e não estou em lugar nenhum; não estou mais servindo a mesa dos senhores brancos e nem estou mais triste na senzala em que eles estão transformando o Brasil. Por isso talvez Deus tenha me tirado de lá e me colocado numa rua fria e vazia onde pelo menos eu possa cantar como o passarinho. As aves daqui não gorgeiam como as de lá, mas ainda gorgeiam."
Texto Introdutório: Camila Gabacci
Fonte:
Fragmento extraído do site:
http://www.gilbertogil.com.br/sec_bio.php?page=9&ordem=DESC
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